terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Quem canta, seus males espanta. Clientes também.

Quem canta, seus males espanta. Clientes também.

A pergunta da garota do caixa foi a de sempre, mas desta vez minha resposta mudou.

– Algum produto que o senhor não encontrou em nossa loja?

– Uma música ambiente que não seja pagode – respondi, cansado de quase duas horas de suplício naquele supermercado.

Alguns são alérgicos a camarão, outros a cerveja. Sou alérgico a pagode. A previsibilidade dos versos e a monotonia mecânica do ritmo me dão a sensação de estar aprendendo tabuada entre teares. Nada contra os que apreciam o gênero. É alergia, só isso.

Como nós, a música é tripartida. Ritmo, melodia e letra levam estímulos ao corpo, alma e espírito. O ritmo faz bater o pé e gingar, a melodia retine a alma para emocionar, mas é a letra que fala ao mais íntimo do ser, aquilo que nos distingue dos irracionais.

Animais batucam os cascos ritmados, ventos assoviam melancólicos, mas só os seres humanos são capazes de cantar palavras, privilégio que nem anjos desfrutam. Enquanto você analisa qualidade musical segundo o peso que os diferentes estímulos têm – dos mais primitivos aos mais elevados – para corpo, alma e espírito, volto à música no supermercado.

A música deve ajudar a criar a atmosfera de compra – a estimular o cliente a permanecer no ambiente e a comprar sempre mais. Se for lenta, ele fica mais tempo e compra mais. Se for rápida e intencional, vai agilizar o processo para dar lugar a outros e evitar aglomerações. Restaurantes inteligentes fazem isso para desocupar mesas. Naquele supermercado vazio não havia tanta inteligência assim.

Todo gerente deveria ver na loja o seu palco, nas instalações o cenário, no som ambiente a orquestra e nos funcionários os atores de uma peça teatral. Tudo com a finalidade de conduzir o público. Lay-out, móveis, iluminação, cores, sons e até aromas são vendedores invisíveis e irresistíveis, agindo em nossa mente para transformar a compra numa experiência de quero mais.

Em um supermercado, quase 60% das decisões de compra são tomadas no ambiente, daí a responsabilidade que sua atmosfera tem de sussurrar os estímulos corretos em minha mente, estimulando-me a comprar e até ajudando na decisão. Não era o que o pagodeiro estava fazendo. Após sofrer aquele som destilado pelos alto-falantes derramando palavras chulas ou versos açucarados, decidi encerrar minhas compras com uma breve parada nas cervejas.

Ouvi o pagodeiro cantar de coxas torneadas, barrigas saradas, coisas assim. Tentei conferir, mas minha barriga não permitia que eu visse minhas coxas. Decidi escolher pelo preço, mas o pagodeiro cantou que a coisa mais feia é gente que chora de barriga cheia. Na hora de decidir pela marca, ele me mandou vadiar, agressivo. Melhor esquecer. Pagodeiro nenhum iria me ajudar a escolher. Fui para a seção de frios.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Dor e prazer... tênue limite

O cérebro é incrível. Ele esquece a dor, mas não o prazer. Quero dizer, você até se lembra que sentiu dor, mas não volta a senti-la só de lembrar. O prazer sim. Se não fosse assim, cada mãe só teria um parto e ninguém teria irmãos.


E foi graças a essa particularidade do cérebro esquecer que acabei me esquecendo da última vez que a operadora ofereceu um novo celular em troca de meus pontos acumulados. A experiência doeu tanto que serviu de inspiração para uma crônica. Agora minha operadora de celular voltou a me inspirar.

Sim, ganhei outro aparelho e, num surto de amnésia que me deixou indiferente à dor, fui correndo à loja em busca do prazer de um modelo mais moderno.

- Para receber o aparelho novo o senhor precisa assinar uma linha pré-paga no velho - explicou a moça.

Protestei, mas ela disse que aquela era a condição, que eu ganhava 32 reais de bônus para gastar à vontade, e que depois era só cancelar a linha. Quem é capaz de resistir a tanto prazer? Fui na conversa da moça, que provavelmente me enrolava para atingir sua quota de vendas. Aceitei.

Depois de duas ligações usando o aparelho velho, preferi jogá-lo numa gaveta sem me preocupar em gastar o saldo. Ficou lá até aparecer uma cobrança de 32 reais. Liguei para a operadora, ouvi todas as músicas da espera e pedi para cancelar a linha que nunca quis.

- Para cancelar o senhor precisa pagar os 32 reais. O bônus só vale para quem não desiste.

Paguei para desistir!

Um mês depois, nova conta, mais 32 reais. Liguei, ouvi todo o repertório musical e fui atendido pela atendente da triagem que, depois de ouvir minha história de dezoito páginas, passou para o setor de cancelamentos. Reprisei a história e a nova atendente mostrou-se indignada.

- Como o senhor pode ter recebido nova cobrança?! Isso está errado! Sua linha foi encerrada há um mês no sistema! Estou vendo bem aqui. O senhor não pode receber cobrança!

Quase acreditei ter encontrado uma aliada do outro lado da linha.

- Então você vai providenciar...

- Não, senhor, isso é com o departamento de contas e daqui não dá para transferir. O senhor precisa ligar lá...

Entendi. O call-center do cancelamento deve ficar em Porto Alegre e o de contas em Belém do Pará. Por isso as meninas nunca se encontram. Nova ligação, mais música de espera e, finalmente, a atendente da triagem.

- Não posso transferir o senhor para contas porque meu sistema está fora do ar e não tenho como verificar suas informações. Em um prazo de 5 dias o senhor terá uma resposta. Anote o número do protocolo de seu chamado...

Já nem anoto mais esses números porque nunca me serviram. Mas vou repetindo com a atendente como se estivesse anotando.

- Cinco... zero... seis... você disse seis ou meia-dúzia?

A bateria está quase acabando, por isso é melhor encerrar esta crônica contando que há pouco recebi um e-mail (sim, minhas súplicas também foram por e-mail) que diz:

"...na data de hoje efetuamos a retificação do valor de R$ 32,00 cobrados indevidamente em sua fatura."

Retificação do valor significa que não preciso mais pagar ou que agora vou pagar um valor retificado? Bem, vou esperar para ver se meu nome não vai para o cartório.

Tem gente louca para saber o nome da operadora. Não digo. Afinal, ela não me proporciona só dor, mas seu atendimento também me dá prazer. Não estou louco, não. Anote aí esta dica e você vai passar a gostar de esperar pela atendente:

Coloque o telefone no viva-voz e continue trabalhando, como eu fiz durante todo o tempo da espera. Se quiser sofisticar, ligue num amplificador.

O que? Sua operadora toca "Pour Elise", a música do caminhão de gás? É por isso que não troco a minha. É a que oferece o melhor repertório de espera. Hoje ouvi um programa inteiro só de bossa-nova.